Couros Sagrados e Batidas Perfeitas

Sob o céu noturno do Rio de Janeiro, enquanto as luzes da Sapucaí iluminam plumas, strass e sorrisos suados, há um som que precede a chegada da Estação Primeira de Mangueira. Não é apenas o rufar de surdos ou o agudo dos tamborins — é uma pulsação coletiva, uma cadência que carrega em suas notas a memória de décadas. No centro dessa sinfonia de couros e metais, havia um homem que, por mais de meio século, não apenas regia, mas “respirava” o ritmo da verde-rosa. Valdomiro Tomé Pimenta não era um simples diretor de bateria; era um artesão do tempo, um tecelão de tradições que transformou tambores em extensões de seu próprio corpo. Nascido em 1901 no Morro da Favela, rebatizado como Providência, Valdomiro chegou à Mangueira aos 15 anos, em 1916, trazendo consigo não só a herança das ruas estreitas e dos diálogos entre malandros e trabalhadores, mas também um ouvido musical lapidado no Patronato de Pinheiral. Lá, entre lições de zootecnia e solfejos na banda escolar, aprendeu a linguagem dos pistons e saxofones, uma base que mais tarde traduziria para a linguagem dos surdos e cuícas. Sua ascensão à liderança da bateria, em 1935, foi marcada por um concurso singular, quase lendário: diante de Geraldo Macumba e outros candidatos, encourou um tamborim com couro de gato tratado com cinzas, técnica que lhe garantiu o posto por votação direta. “Só não ganhei por unanimidade porque não votei em mim mesmo”, brincaria décadas depois, revelando a ironia sutil que contrastava com sua severidade nos ensaios. Valdomiro comandava a bateria como um general de trincheiras sonoras. Alinhava os ritmistas em filas rigorosas — tamborins à frente, seguidos por cuícas, agogôs e surdos —, exigindo precisão militar. “Batedor para ser bom tem que bater mesmo. Não gosto de mímica”, declarava, resumindo uma filosofia que misturava disciplina férrea e devoção quase religiosa. Seu ouvido, capaz de identificar um erro rítmico a metros de distância, tornou-se lendário, assim como seus rituais pré-Carnaval: colhia ervas como nêga-mina e abre-caminho nas matas de Magé, preparando óleos com azeite de dendê para tratar os couros. Era uma preparação que unia o técnico ao sagrado, como se cada batida carregasse o espírito de Vovó Conga ou Vovó Catarina, entidades que, segundo Valdomiro, o guiavam durante os desfiles. Mas por trás do mestre inflexível, havia um homem de contradições tocantes. Manco devido a um acidente com um caminhão, transformava-se em “gigante de gestos plásticos” à frente da bateria. Aceitou auxiliares como Ximbico e Saratoga apenas quando a quantidade de ritmistas tornou-se incontornável, mas jamais abriu mão de afinar pessoalmente cada instrumento. Substituía couros rasgados, desamassava ferragens e, mesmo após se aposentar, continuou a supervisionar ensaios até seus últimos dias. Sua morte, em 1983, aos 81 anos, foi acompanhada por uma última batucada: trezentos ritmistas seguiram seu caixão até o Cemitério do Caju, entoando “Mangueira, teu cenário é uma beleza”, enquanto “seu” Tinguinha, figura histórica da agremiação, passava o apito a Ximbico, herdeiro escolhido a dedo. Este capítulo não se limita a contar a história de um homem; explora como Valdomiro Pimenta entrelaçou corpo, instrumento e espiritualidade para forjar a identidade sonora de uma Escola. Como um mestre que preparava couros com ervas sagradas conseguiu equilibrar a rigidez de um exército com a fluidez de um terreiro? E de que modo seu tambor, silenciado há quatro décadas, ainda ecoa nas avenidas do samba? A resposta está nas páginas que seguem — nas vozes daqueles que viram suas mãos transformarem pele animal em ritmo, e ritual, em legado. Boa leitura.

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Como citar esse artigo — OLIVEIRA, Marcelo Fonseca de. “COUROS SAGRADOS E BATIDAS PERFEITAS”. In: MEMÓRIA Verde Rosa. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: https://memoriaverderosa.com.br/valdomiro/. Acesso em: 24/04/2025.

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