
No canto de um galpão antigo, entre moldes esquecidos e latas de tinta secas, ecoava o som do papel sendo rasgado com precisão, como se cada pedaço soubesse de antemão a forma que irá tomar. Há nesse gesto quase mecânico uma memória que persiste: a de um homem que moldava o carnaval com as próprias mãos, como quem modela o tempo. Entre escadas de madeira e sacos de papel empilhados, nasciam figuras que pareciam emergir do fundo do povo — imensas, vibrantes, sagradas. Era ali, sob telhas de zinco e luz fraca de oficina, que o Brasil ganhava feições novas, todas feitas de imaginação, cola e devoção. O chão, coberto de pequenos pedaços de jornal e gesso, misturava-se à poeira dos anos. E as paredes, pareciam guardar algo da energia que ali circulava: o riso contido dos (seis) ajudantes, o barulho dos pregos sendo batidos nas alegorias, o som abafado do rádio tocando sambas antigos. Dali saíam orixás, santos católicos, bichos de todas as espécies, personagens saídos da literatura, da política, da lenda. Um zoológico, um altar e uma biblioteca visual, reunidos num só lugar. Um museu chamado Brasil — como ele gostava de dizer — onde nenhuma peça era perdida, pois todas poderiam um dia ganhar nova vida, após um conserto, uma pincelada, um sopro. Essa arte, longe do refinamento técnico ou do academicismo plástico, trazia a beleza do essencial. O improviso não era precariedade, mas escolha. A estética não era grandiloquente, mas profundamente popular. Era o oposto da opulência que invadiu o carnaval nos anos seguintes — e, ainda assim, não menos eficaz. Por trás de cada solução simples, havia uma história de luta, de sobrevivência, de fidelidade a uma visão do mundo que preferia o afeto ao luxo, a invenção à ostentação. E o artista, discreto, mantinha-se à margem da disputa por reconhecimento, mas nunca longe da emoção de um desfile. Pelo Tuiuti e pela Mangueira, desenhou carnavais como quem borda bandeiras de memória. Deu forma ao azul e amarelo de um morro que resistia e coloriu com verde e rosa os sonhos de uma escola que sempre dançou entre a tradição e a ousadia. Foi pioneiro em fabricar alegorias para outras escolas, ampliando a presença de sua arte pelo Brasil. Ganhou títulos, recebeu elogios, mas nunca perdeu o traço humilde que o caracterizava. Não buscava perfeição — buscava verdade. E nela se consagrou. Na porta do galpão, hoje vazio, ainda se pode imaginar o vulto curvado, magro, com bigode fino, sobre uma escultura inacabada, a mão firme, o olhar concentrado. Não há ali nenhum troféu em exposição. Mas, para quem sabe ver, cada mancha de tinta no chão é um aplauso, cada fragmento de papel, uma saudação. Agora é hora de empurrar a velha porta do ateliê e mergulhar na trajetória de Julinho da Mangueira — artista do povo, mestre da simplicidade e criador de carnavais que atravessaram décadas com a força da beleza essencial. Siga a leitura e descubra os caminhos, as cores e os bastidores de uma vida inteira dedicada ao carnaval.
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Como citar esse artigo — OLIVEIRA, Marcelo Fonseca de. “COM MÃOS HUMILDES, O ESPETÁCULO”. In: MEMÓRIA Verde Rosa. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: https://memoriaverderosa.com.br/julinho/. Acesso em: 03/07/2025.
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