Fala, Mangueira, fala!

O morro de Mangueira, envolto em seu manto de história e tradição, é mais do que uma simples comunidade no coração do Rio de Janeiro. É um palco onde o samba se entrelaça com a vida cotidiana, onde cada esquina e cada conversa são embaladas pelo ritmo pulsante que ecoa pelas vielas. Nas encruzilhadas da vida dos moradores, o samba é o fio condutor, unindo, somando, nunca dividindo. E no epicentro dessa paixão está a sede da icônica Estação Primeira de Mangueira, erguendo-se como uma fortaleza cor-de-rosa, uma guardiã do legado cultural que atrai a todos com o anúncio do surdo de marcação, convocando os corações para mais uma celebração.

Mas além das paredes da escola, há outro ponto de encontro crucial: a casa de d. Neuma. Seu lar é mais do que uma residência; é um refúgio para os problemas e alegrias dos moradores, um farol de acolhimento em meio às tempestades da vida. Como diretora de relações públicas da escola, d. Neuma personifica a essência acolhedora e compassiva que torna a Mangueira uma família em si mesma.

A história da Mangueira é tecida com fios de samba e resistência. Desde os primeiros dias dos blocos carnavalescos, como os Arengueiros, Mestre Candinho e Tia Tomásia, até a fusão que deu origem à Estação Primeira em 1928, liderada pelo lendário Cartola, a trajetória da escola é marcada por união e superação. E ao longo dos anos, seus desfiles lendários contaram histórias do Rio de Janeiro e homenagearam figuras como Villa-Lobos e Monteiro Lobato, tocando os corações dos espectadores e reafirmando a identidade única da Mangueira.

À medida que o Carnaval se aproxima, a Mangueira se prepara para mais uma vez encantar o público com seu enredo “Samba, alegria e povo”, revisitando as raízes do samba e celebrando ícones como Carmem Miranda. Nos bastidores, famílias inteiras se unem para dar vida aos desenhos verde-rosa que adornarão a avenida, porque na Mangueira, o Carnaval é mais do que uma festa; é uma paixão compartilhada que une gerações e mantém viva a chama do samba. E quando os primeiros raios de sol iluminarem a Avenida, os corações dos mangueirenses cantarão em uníssono: “Ô, ô, ô, ô, a Mangueira chegou, ô, ô !!!”

Os parágrafos acima resumem brevemente o artigo “Fala Mangueira, fala!”, escrito por Haroldo Costa e publicado na revista O Cruzeiro no dia 13/01/1968. A seguir, você encontrará a transcrição completa do artigo. Aproveite a leitura e saudações verde-rosa!

Nininha Chochoba. Na Mangueira, as baianas já começaram a ensaiar evoluções para o carnaval.
Nininha Chochoba

Não há nenhum exagero em se afirmar que o morro de Mangueira é uma comunidade a serviço do samba. Por entre os seus barracões, nas vielas tortuosas e lamacentas, nas conversas entre famílias, nos papos de passatempo, entre uma cerveja e outra, à volta do balcão do boteco Só Para Quem Pode, o samba é o denominador comum. Ele soma, junta, reúne, nunca divide. A sede da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, com sua imponente fachada pintada de rosa com alguns arremates em verde, se assemelha a uma fortaleza vigilante, uma atalaia que se ergue sobre o morro, atraindo a todos de lá e de fora, quando o surdo de marcação com sua voz firme e cadenciada anuncia que o samba vai começar.

Além da sede da escola, há outro local que congrega todos os acontecimentos recreativos e até mesmo sentimentais dos habitantes do morro: é a casa de d. Neuma. Nenhuma visita é válida, nenhuma pesquisa será completa, nenhuma informação será integral, se Dona Neuma não for consultada. Apesar de ter uma família numerosa, d, Neuma é o poço comum para onde convergem todos os problemas, todas as aflições, todas as dúvidas do pessoal da Mangueira. E ela está sempre com o sorriso à mostra, animando, confortando, com uma palavra de carinho ou uma cervejinha gelada. Diretora de relações públicas da escola, existem por aí poucos, mesmo profissionais, que a igualem em eficiência e compreensão da tarefa que lhes cabe.

De bloco a escola

Lá por volta de 1927, quando a grande força do carnaval carioca eram os blocos, existiam no morro de Mangueira três grupos que mediam forças: os Arengueiros, Mestre Candinho e Tia Tomásia, sendo que os dois últimos eram terreiros de macumba que reuniam seus filhos-de-santo no carnaval e saíam como blocos. Aos atabaques e agogôs juntavam-se cuícas e pandeiros, e as saias engomadas e brancas das baianas rodopiavam ao som de um samba sacudido, em geral curto e de coro fácil.

Os Arengueiros tinham esse nome porque os seus componentes não dispensavam uma catimba, uma arenga em boas condições, se bem que fossem muito bons de samba. Faziam parte do bloco alguns “moleques bambas”, denominação comum na época que mais tarde fariam nome como compositores. E entre eles basta citar Agenor de Oliveira e Carlos Moreira de Souza, ou melhor, Cartola e Carlos Cachaça.

Nesta época, os blocos, além da força que representavam no carnaval, eram também uma demonstração da unidade dos bairros onde eram formados. Famílias inteiras, de ruas inteiras, saíam para visita de cordialidade a outras ruas e outros bairros, numa animação contagiante e crescente. Como o morro da Mangueira estava tripartido, criando uma competição que o enfraquecia, o Cartola propôs e conseguiu a fusão dos três blocos, tendo surgido então o bloco carnavalesco Estação Primeira da Mangueira, no dia 28 de abril de 1928, com as cores verde e rosa, escolhidas por dona Lucíola Ribeiro de Jesus, que era dos Arengueiros e até hoje sai na Mangueira.

Sem ressentimentos nem frustrações os foliões dos três blocos uniram-se em torno das cores verde e rosa, começando aí o grande mito que ainda hoje sacode a Avenida Presidente Vargas, quando a “Manga” desponta na Candelária.

As grandes figuras

O primeiro presidente da Mangueira foi Saturnino Gonçalves, pai de d. Neuma que já naquela época era uma fogosa pastora que não perdia um ensaio e sambava com um vigor e uma graça que chamavam a atenção. O diretor de harmonia era o próprio Cartola, que já compunha com talento e seriedade, tendo alguns dos sambas gravados por Francisco Alves, o maior cartaz da época, que não poucas vezes subiu o morro à sua procura. “Divina dama”, “Fita meus olhos”, “Eu tenho orgulho” este de parceria com Carlos Cachaça e gravado por Aracy de Almeida, são alguns dos sambas que o Rio cantou a imposição dos disc-jóqueis ou das paradas de sucessos.

Até hoje a Mangueira tem um núcleo ativo de compositores. Lá estão o Mestre Gato, Padeirinho, Zagaia, Pelado, Hélio Turco, Jurandir, Cláudio e José Bispo, este o popular Jamelão, a voz mais “escola de samba” dos cantores cariocas. E isto ser esquecer o velho Cartola e Carlos Cachaça decanos da ala dos compositores. A produção é intensa e consequente. Não se limita apenas aos sambas-enredo, e, quando chega ao disco, marca logo a sua presença. Quem não se recorda de “Eu vivo em paz” de Jamelão, Leleco e Jorge Zacarias; “Pra mim” de Mestre Gato e Jamelão; “Vasta extensão”, de Padeirinho e Jorginho; “Papel reclame” de Nelson Sargento, ou “Amor proibido”, de Cartola? E do Zé com Fome (mais tarde Zé da Zilda)? E do Nélson Cavaquinho (“Tire êste sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor”)? E da Clementina de Jesus? Não. Não se pode medir em valores a riqueza musical da Mangueira.

Nos ensaios realizados na quadra rua Visconde de Niterói, entre a garotada de hoje, que aprendeu a amar a Mangueira desde o berço, não é difícil encontrar muitos dos mais antigos componentes da escola. Lá está o Marcelino José Claudino, 1.º mestre-sala, hoje presidente do conselho fiscal, exibindo um sorriso paternal entre um e outro gole de leite-de-onça (para os não iniciados: batida de leite-de-coco). O Waldomiro José Pimenta, que desde 1935 é o diretor de bateria, com o apito e uma vareta comanda os naipes de tamborins, taróis, surdos, pandeiros, chocalhos e reco-recos, com a segurança e a precisão de um Karabtchewisk1. O Chico Porrão, sócio n° 1, mora ao lado da sede e do muro aprecia todos os ensaios. Quando o samba esquenta, ele não resiste e vai para a quadra, comandar as evoluções das pastoras com uma leveza que dissimula os seus quase 200 quilos.

Waldomiro José Pimenta, diretor de bateria desde 1935, da Estação Primeira de Mangueira, está de apito afinado para descer o morro
Waldomiro

As vitórias

O primeiro desfile de escola de samba teve lugar na Praça Onze2 e foi no carnaval de 1932. Naquela época, os jornais já prestigiavam os acontecimentos pré-carnavalescos com seções que tinham grande número de leitores, e promoviam os desfiles competitivos entre blocos, ranchos e escolas de samba. Em 1932 quem organizou o desfile foi o jornal Mundo Sportivo (de acordo com a grafia original) e os repórteres que trabalharam na promoção viriam mais tarde a ser três dos nossos maiores compositores: Orestes Barbosa, Antônio Nássara e Cristóvão de Alencar. O resultado foi o seguinte: 1. ° lugar: Estação Primeira de Mangueira; 2. ° lugar: Vai Quem Pode, que depois veio ser a Portela, e, em 3. ° lugar, o Para o Ano Sai Melhor.

mangueira é uma comunidade a serviço de um só senhor: s. exa. o samba

Em 1933, quem promoveu o desfile foi o jornal O Globo, e a Mangueira empolgou mais uma vez o primeiro lugar. Daí em diante a Estação Primeira levantou os campeonatos de 1934, 1940, 1954, 1961 e 1967. Nestas vitórias houve uma curiosa coincidência: em 1954 e 1961 os enredos escolhidos versavam sobre a história do Rio de Janeiro. Em 54: “Relíquias do Rio antigo”; em 61: “Rio antigo”.

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Samba: cultura popular

Um dos mais belos carnavais realizados pela Mangueira foi em 1966, com enredo “Exaltação a Villa-Lobos”. A descrição da vida e da obra do nosso compositor maior, através das alas e das figuras de destaque, foi empolgante e comovedora. Ninguém que assistiu ao desfile ficou isento da emoção causada pela apoteose que a gente da Mangueira, gente simples que jamais entrou no Teatro Municipal e nunca vira o grande Villa reger ou ter uma de suas composições executadas por uma orquestra sinfônica, ergueu àquele que é a grande glória musical do país. Dava arrepio ouvir, às 10 horas da manhã de segunda-feira de carnaval mais de 5 mil pessoas entoarem o coro do samba-enredo de Jurandir e Cláudio:

Brilha… com os astros do céu!
Ao descortinar o véu!
Iluminando as passarelas universais
as lindas notas musicais!

Mas naquele ano a Mangueira não obteve o primeiro lugar, e desde a Quarta-Feira de Cinzas começou a preparar-se para fazer justiça a si mesma, o que aconteceu no Carnaval de 1967. O enredo escolhido teve por título: “O mundo encantado de Monteiro Lobato”, tendo mais uma vez o Carnaval servido de traço de união entre a cultura e o seu dono de fato: o povo, fechando assim o ciclo autor-inspiração.

Os mangueirenses contam com orgulho o que foi a visita realizada pela escola a Taubaté, em 21 de abril de 1967, que levou a câmara local a autorizar a desapropriação do Sítio do Pica-Pau-Amarelo, pendência que já levava vários anos. Foi mais um serviço público da verde-rosa.

Para o Carnaval deste ano, a Estação Primeira de Mangueira está preparando o enredo “Samba, alegria e povo”, que faz um passeio retrospectivo que vai da casa de tia Aciata3, um dos primeiros redutos do samba carioca, na praça Onze, até a figura inesquecível de Carmem Miranda.

Os tecidos verde-rosa já começaram, há muito tempo, a ser cortados e costurados. Famílias inteiras se reúnem em mutirão para pregar enfeites e aplicar bordados. Todos se irmanam na mesma tarefa, porque a Mangueira precisa fazer bonito outra vez. Para que, com os primeiros raios de sol de segunda-feira de carnaval, o coro dos seus admiradores possa cantar na Avenida:

“Ô, ô, ô, ô, a Mangueira chegou, ô, ô !!!”

Mangueira teu cenário é uma beleza
Morro de Mangueira

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Como citar esse artigo — OLIVEIRA, Marcelo. “Fala, Mangueira, fala!”. In: MEMÓRIA Verde Rosa. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: https://memoriaverderosa.com.br/fala-mangueira-fala/. Acesso em: 23/04/2025.

  1. Isaac Karabtchevsky (São Paulo, 27 de dezembro de 1934) é um maestro brasileiro. Iniciou sua carreira como regente do Madrigal Renascentista, de Belo Horizonte. Já atuou como diretor artístico da Orquestra Sinfônica Brasileira de 1969 a 1994, do Teatro La Fenice, em Veneza, entre 1995 e 2001, da Orquestra Tonkünstler, em Viena, entre os anos de 1988 e 1994, da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre de 2003 a 2010 e atualmente é o diretor artístico e regente principal da Orquestra Petrobras Sinfônica. Além disso, foi diretor musical da Orchestre National des Pays de la Loire entre os anos de 2004 a 2009. Atualmente, é diretor artístico do Instituto Baccarelli, em São Paulo, projeto social na Comunidade de Heliópolis, que reúne 1 500 estudantes distribuídos entre cinco orquestras sinfônicas e 17 corais. (ISAAC KARABTCHEVSKY. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2023. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Isaac_Karabtchevsky&oldid=67122993. Acesso em: 15 dez. 2023.) ↩︎
  2. A Praça Onze é uma região histórica da região central da cidade do Rio de Janeiro, cujo nome foi herdado de um antigo logradouro, hoje extinto. Localiza-se no Centro, no limite com o bairro da Cidade Nova. A original Praça 11 de Junho (data da Batalha de Riachuelo) existiu por mais de 150 anos até a década de 1940 e era delimitada pelas ruas de Santana (a leste), Marquês de Pombal (a oeste), Senador Euzébio (ao norte) e Visconde de Itaúna (ao sul). A princípio denominada de “Largo do Rocio Pequeno”, tornou-se nas primeiras décadas do século XX, um dos locais mais cosmopolitas da então Capital Federal, ao abrigar famílias de imigrantes recém desembarcados. As etnias mais populares no entorno da Praça Onze eram os negros (na maioria oriundos da Bahia), seguidos pelos judeus de várias procedências. Portugueses, espanhóis e italianos também eram numerosos. (PRAÇA ONZE. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2023. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Pra%C3%A7a_Onze&oldid=66964461. Acesso em: 15 nov. 2023.) ↩︎
  3. Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata (Santo Amaro da Purificação, 13 de janeiro de 1854 – Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 1924) foi uma sambista, mãe de santo brasileira e curandeira, considerada por muitos como uma das figuras mais influentes para o surgimento do samba carioca. Foi iniciada no candomblé em Salvador por Bamboxê Obiticô e era filha de Oxum.No Rio de Janeiro, era iaquequerê na casa de João Alabá. Também ficou marcada como uma das principais animadoras da cultura afro-brasileira, sobretudo na região central carioca. Em sua casa na Praça Onze, onde os sambistas se reuniam, foi criado o primeiro samba gravado em disco.Tia Ciata se tornou a grande dama das comunidades negras no Brasil pós-abolição e uma das principais incentivadoras do samba depois de abrir as portas de sua casa para reuniões de sambistas pioneiros quando a prática ainda era proibida por lei. (TIA CIATA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2024. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Tia_Ciata&oldid=67330384. Acesso em: 19 jan. 2024.) ↩︎

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