
Entre sons esquecidos e silêncios persistentes, há morros onde o tempo não se mede em relógios, mas em passos, em memórias que insistem em reaparecer nas ladeiras, nas varandas, nas vozes que cantam sem pressa. Nesses espaços, a vida não começa: ela continua. Os trilhos cortam a paisagem como costuras de ferro na carne da cidade. Eles anunciam chegadas e ausências, deslocam corpos e histórias. E em meio à poeira e ao vapor, um menino aprende a ler o mundo com os olhos atentos de quem carrega responsabilidades demais para a idade que tem. Na casa humilde à beira da linha, o ruído da locomotiva mistura-se ao das perdas — pai distante, mãe e irmã tragadas pela febre de um século novo demais para oferecer abrigo. Mas é também ali, nos vãos entre a dor e o afeto, que germinam os primeiros gestos de poesia: um recibo escrito à mão, uma cobrança feita com respeito, uma palavra inventada no meio da manhã. A infância se dobra cedo à sobrevivência, mas nunca se entrega. E é justamente essa teimosia do afeto que molda o que virá depois. Com o tempo, surgem os encontros. Alguns são fortuitos, outros inevitáveis — como o entrelaçar de rimas e melodias, ou o cruzamento de um samba e um destino. Amizades se tornam pactos. Canções nascem de madrugadas, de paisagens vistas do alto, de amores que não cabem mais no peito e precisam virar refrão. Um homem se faz palavra. E sua palavra, por sua vez, constrói um lugar: uma escola, uma tradição, um povo. Sua ausência, quando há, transforma-se em presença lendária, feita de histórias contadas com um sorriso no canto da boca e uma lágrima por trás dos óculos. Os anos passam como folhas em branco num caderno esquecido — até que, um dia, a cidade acorda para perceber que aquela voz já não está mais entre nós. O corpo se vai, mas o que fica não se explica: está nas esquinas, nas feijoadas, nos bares, nas quadras, nas manhãs de desfile e nas madrugadas de criação. Está onde a memória samba, sem medo da saudade. É dessa matéria que é feito Carlos Cachaça. Agora, siga adiante: o capítulo que se abre é também a travessia de sua vida em samba.
topo ↑
Como citar esse artigo — OLIVEIRA, Marcelo Fonseca de. “UM GOLE DE VERDE-ROSA”. In: MEMÓRIA Verde Rosa. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: https://memoriaverderosa.com.br/carlos-cachaca/. Acesso em: 29/06/2025.
Deixe um comentário