
Na curva do tempo, entre os ecos do fado lusitano e o batuque quente dos morros cariocas, Alfredo Lourenço atravessou o Atlântico carregando mais do que malas: trazia na alma o compasso melancólico da Alfama, mas o destino lhe reservava um novo ritmo, mais sincopado, mais vibrante — o samba. Baixo, elegante e de fala mansa, não demorou a trocar a guitarra portuguesa pelo tamborim mangueirense, pendurando na parede do barraco, com a serenidade de quem se despede de uma velha vida, a melodia triste que o acompanhara até ali. Seu barraco no Santo Antônio, encravado entre becos e tendinhas, tornou-se farol de um novo modo de cantar. Ali, envolto pelos sons dos ensaios que subiam das rodas da Unidos de Mangueira, Alfredo se encantou com aquela batida que pulsava como coração de comunidade. Com seu sotaque ainda arrastado, foi se deixando abrasileirar — e na mesma medida em que deixava o mar, os fados e as desgarradas, abraçava o samba, os versos rimados na ladeira e a alegria nascida da dor. O laço com o menino Nélson Sargento, que o chamaria de pai e o guiaria rumo à verde-rosa, selou sua nova identidade. Da parceria entre eles brotaram canções que misturavam sangue e afeto, poesia e consciência. Alfredo era operário da palavra — letra por letra, erguia sambas como quem levanta paredes: com alicerce, suor e beleza. E entre os operários da Mangueira, foi se tornando mestre. Presidiu a ala dos compositores, incentivou talentos, mudou temas, sugeriu enredos e cantou o operário anônimo antes que isso virasse moda. Quando adoeceu, não largou o caderno de letras nem o ouvido atento à melodia. Dava seus últimos versos deitado, pedindo a Nélson que os musicasse, enquanto amigos faziam garrafadas e afagos. Morreu como viveu: entre sambas, abraços e devoção. Seu velório foi uma roda de lembrança e saudade. O caixão, coberto pela bandeira da Estação Primeira, desceu o morro embalado por um samba triste, sem estardalhaço — mas com a dignidade de quem fez da vida um refrão coletivo. Quantas notas precisa um samba para contar uma vida inteira? Nas próximas páginas, o compasso da trajetória de Alfredo Português ecoa em cada estrofe e cada gesto. Descubra como um marinheiro do outro lado do oceano aportou no coração do samba e ajudou a construir — com verso, suor e afeto — a história da Mangueira que canta e resiste.
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Como citar esse artigo — OLIVEIRA, Marcelo Fonseca de. “TEM PORTUGUÊS NO SAMBA”. In: MEMÓRIA Verde Rosa. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: https://memoriaverderosa.com.br/alfredo-portugues/. Acesso em: 23/04/2025.
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