
A Mangueira não desfila; ela pulsa. Seus tamborins não marcam apenas o ritmo, mas o compasso de vidas entrelaçadas como as linhas de um partido-alto — algumas dissonantes, quase sempre perfeitas. Nos anos entre 1990 e 1992, enquanto o Brasil respirava os ares turbulentos do Plano Collor, a verde-rosa enfrentou sua própria tempestade. Nas vielas do morro, onde o samba é ofício e herança, José Ananias de Marcelos — presidente, tesoureiro, compositor — tornou-se o “surdo” que sustentou a cadência da escola em tempos de vento forte. Seu nome, pouco celebrado fora dos barracões, é fio condutor de uma história que mistura crise, cacau, notas controversas e a arte de Ziraldo em camisetas. Na quadra da Praça Onze, onde o eco dos agogôs se confunde com o murmúrio das reuniões decisivas, Ananias era um homem de silêncios eloquentes. Assumira a presidência em 1989, herdando uma Mangueira ferida pelo 11º lugar do ano anterior. Seus primeiros carnavais — “Deu a Louca no Barroco” (1990) e “As Três Rendeiras do Universo” (1991) — foram gestados entre contas bloqueadas pelo confisco econômico e a ausência de um patrono. “Queremos que alguém, na iniciativa privada, troque nossos cruzados novos por cruzeiros”, desafiou ele ao *Jornal do Brasil*, enquanto costureiras trabalhavam sem receber e dona Zica, viúva de Cartola, suplicava: “Minha Mangueira não pode ficar fora do Carnaval”. A escola, que sempre se orgulhara de ser bancada pela comunidade, via-se encurralada entre a ética e a necessidade. Em 1992, a virada veio com a ousadia de quem entende que samba também se faz com marketing. Ananias e sua comissão criaram o projeto No Tom da Mangueira — discos, vídeos, camisetas estampadas por Ziraldo —, vendendo não produtos, mas pedaços de uma identidade. Empresas pagavam 15 mil dólares para presentear clientes com o verde-rosa em forma de arte, enquanto a escola reerguia seu barracão e cobria a quadra. “Não precisávamos depender de quem quer que fosse”, orgulhava-se a diretoria. Mas o Carnaval, mestre em ironias, reservava uma lição: Juciê Mendes, jurado de alegorias, deu à Mangueira a nota 7,5 que ecoou como um atabaque desafinado. A Rua Visconde de Niterói amanheceu com faixas pedindo “Mangueira fora da Liga”. Nas mãos das baianas, o tecido das saias descreve círculos que guardam segredos — histórias de noites sem sono nos barracões, de contas feitas à luz de lampiões, de alegorias montadas entre dívidas e esperanças. Por trás do brilho do cetim, ouvem-se sussurros de um tempo em que a Mangueira precisou reinventar-se: trocar patrocínios por camisetas de Ziraldo, crise por criatividade. Quantas mãos anônimas moldaram o enredo de 1992? Que alianças silenciosas garantiram que o verde-rosa não desbotasse? Nas páginas seguintes, desvende os fios dessa trama — onde cada tamborim carrega uma história. A Mangueira não se conta em números; escreve-se em suor, lágrima e samba. Boa leitura.
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Como citar esse artigo — OLIVEIRA, Marcelo Fonseca de. “O VERDE-ROSA QUE SE RECUSOU A DESBOTAR”. In: MEMÓRIA Verde Rosa. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: <https://memoriaverderosa.com.br/ananias/>. Acesso em: 24/04/2025.
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