Zé Gonçalves, Zé-com-Fome ou Zé-da-Zilda: um sambista de renome

José Gonçalves, popularmente conhecido como Zé-com-Fome ou Zé-da-Zilda, foi um nome marcante na música brasileira, embora seu nome de batismo, José Gonçalves, fosse o menos reconhecido dos três. Se dependesse apenas desse nome, talvez fosse confundido com tantos outros “Zés” do Brasil. Contudo, como bem destacou Candeia, Zé-com-Fome era um sambista de renome, e não à toa. Nascido no subúrbio de Campo Grande, no Rio de Janeiro, em 6 de janeiro de 1908, ele cresceu em um ambiente musical que parecia apontar seu destino. Filho de um músico, iniciou seus estudos no cavaquinho ainda muito jovem, aos cinco anos, sob a orientação do pai. Mais tarde, ampliou suas habilidades, dominando também o violão. Mas antes de seguir carreira artística, Zé teve outra profissão: trabalhou como bombeiro-hidráulico, um ofício que parecia distante do estrelato, mas que não impediu sua aproximação com o universo do samba.

Desde a infância, Zé-com-Fome tinha como amigo ninguém menos que Cartola, outro ícone da música brasileira. Crescer na Mangueira foi decisivo para sua formação, não apenas como músico, mas como sambista. Foi na comunidade que ele mergulhou profundamente na arte de fazer samba, aprendendo com mestres como Cartola, Gradim e Carlos Cachaça. Tornou-se um membro ativo da ala de compositores da Mangueira, somando seu talento ao de outros grandes nomes da escola.

Na memória de alguns, como uma relíquia guardada a sete chaves, ainda permanece o episódio peculiar ocorrido no início dos anos 1950: o dia em que Zé-com-Fome afastou-se do morro, expulso por Chico Porrão. A cena é emblemática, quase um folclore dentro das histórias da Mangueira. Seu Chico, como era conhecido, tinha fama de não aceitar desaforo. “A Mangueira não gosta de presepada. Aqui é lugar de macho, gente séria e de respeito”, costumava afirmar, com uma voz grave que impunha respeito e um olhar que cortava como faca. A garotada do morro o temia, e com razão. Quem vacilava, levava cascudo — e não era qualquer cascudo. Chico usava um enorme anel na mão direita que amplificava o impacto e deixava a lição ainda mais inesquecível. As velhas senhoras, as respeitáveis “tias” do morro, comentavam à boca pequena: “Ele não passa é de um indivíduo desnaturado”.

Não se sabe até onde iam os exageros sobre Chico Porrão, mas a verdade é que ele tinha presença, personalidade forte e nenhum receio de impor suas ideias. Zé-com-Fome, por outro lado, era um rapaz conhecido por sua seriedade e respeito. Um sambista de talento inegável e inspiração generosa. Mas havia um traço de vaidade que também fazia parte do seu jeito. E foi exatamente isso que desencadeou o conflito: a vontade de se destacar pela aparência. Zé decidiu esticar o cabelo, dar aquele “adianto no pelo”, como se dizia à época, e caprichar na brilhantina para impressionar as cabrochas.

Uma vaidade inocente? Talvez. Mas foi o bastante para Chico Porrão não engolir. Por que aquilo incomodava tanto Seu Chico? O cabelo esticado, afinal, não interferia em nada na vida dele, nem tampouco no cotidiano do morro. Mas Chico Porrão tomou a situação como uma afronta, um exemplo errado para os mais novos, algo que feria os códigos de conduta não escritos que ele prezava. E avisou: “Tá querendo se mostrar, meu trato? Fica na tua. Olha o exemplo que tu tá dando para os mais novos. O negócio é seguinte: ou tu para com essa chinfras, corta essa onda de esticar o cabelo, ou te ponho daqui pra fora”.

Zé-com-Fome não cedeu. Talvez por orgulho, talvez por acreditar que não devia satisfações a ninguém. Foi firme na sua escolha, e aí prevaleceu a lei do mais forte. Zé teve de se afastar. A Mangueira perdeu, temporariamente, um de seus mais promissores artistas e moradores mais ilustres.

Coincidentemente ou não, na época do entrevero, um dos sambas mais entoados no Morro era de autoria de Zé-com-Fome. Um verdadeiro hino de amor à escola, quase uma confissão de quem se entregava de corpo e alma à Mangueira: “Mangueira foste tu sempre a primeira. És a única bandeira, sem orgulho e sem maldade. Quem se muda pra Mangueira é verdade, vive a vida cheia de felicidade. Quem se muda de Mangueira tem saudade, voltará ou mais cedo ou mais tarde”.

Não é curioso como as letras de samba às vezes parecem profecias? E foi exatamente assim que tudo se resolveu algum tempo depois. As rusgas se desfizeram, os ressentimentos deram lugar ao abraço fraterno, e Zé-com-Fome retornou ao convívio dos seus irmãos mangueirenses. O episódio, embora pequeno na linha do tempo da escola, reflete algo maior: as tensões, as regras informais, e o respeito quase sagrado pelo que se considerava tradição no Morro da Mangueira.

Mais do que uma desavença pessoal, foi uma história de identidade. O que estava em jogo não era apenas um cabelo esticado, mas algo mais profundo que definia o pertencimento e o comportamento dentro da comunidade. Por fim, o que resta é a memória, as palavras cantadas no samba e a certeza de que, cedo ou tarde, quem sai da Mangueira sempre acaba voltando.

A origem do apelido que o marcaria para sempre não está no samba, e sim no teatro popular. Zé ganhou o famoso apelido ao interpretar o personagem “Zé-com-Fome na Casa de Caboclo”, uma peça dirigida por Antônio Lopes de Amorim durante os anos 1930. Outra versão para o apelido é descrita por Franco Paulino em seu livro “Padeirinho: retrato sincopado de um artista” (Hedra, 2005). Segundo Cartola, o apelido teve origem na mania de José Gonçalves sair de toda festa com a caixa do violão abarrotada de doces e salgados.

Um dos momentos mais notáveis de sua carreira ocorreu em 1940, quando Zé-com-Fome foi convidado pelo maestro Villa-Lobos para participar de um projeto histórico. Ao lado de figuras lendárias como Cartola, Pixinguinha, João da Baiana, Jararaca, Zé Espinguela, Donga e Luiz Americano, ele integrou a gravação dos célebres discos de Leopold Stokowski. Essas gravações, realizadas no navio Uruguai, registraram um momento singular na história da música brasileira, misturando tradições populares e eruditas sob a batuta de Villa-Lobos e Stokowski. Esse episódio não apenas projetou o nome de Zé-com-Fome, mas também consolidou sua importância como um dos grandes representantes da cultura brasileira.

Apesar de sua participação em projetos coletivos de grande relevância, Zé também encontrou seu brilho na parceria musical. Ele foi convidado por um amigo a ingressar na Rádio Educadora, onde começou a se destacar em um formato de dupla, ao lado de Claudionor Cruz, conhecido como “Pente Fino”. Com essa experiência, Zé mostrou-se versátil e habilidoso em adaptar seu talento a diferentes dinâmicas.

Mais tarde, já consolidado, tornou-se chefe de um regional e conquistou seu próprio programa na Rádio Transmissora. Foi nesse período que conheceu e se casou com a cantora Zilda, que se tornaria sua companheira de vida e arte. Juntos, formaram a “Dupla da Harmonia”, que fez grande sucesso nas rádios brasileiras nas décadas de 1940 e 1950.

O casamento e a parceria artística com Zilda (rendeu ao casal dois filhos: José Gonçalves Filho e Adilson) foram fundamentais para sua trajetória, adicionando uma camada especial à sua produção musical e fortalecendo sua conexão com o público.

Infelizmente, o destino reservou um desfecho precoce para a vida de Zé-com-Fome. Em 10 de outubro de 1954, aos 46 anos, ele foi vítima de um derrame cerebral. A perda foi sentida profundamente, não apenas por sua esposa e parceira, Zilda, mas também por toda a comunidade artística e pelos fãs que admiravam sua obra.

Um dia após sua morte, o jornal O Globo publicou uma nota que traduzia o sentimento geral: “Da manhã de sexta à manhã de sábado perduraram as esperanças de que o derrame cerebral se tornasse frustrado e os médicos devolvessem aos ouvidos do povo a voz do seu cantor. Mas às 11h20m de anteontem entrou em luto o samba nacional ao confirmar-se a notícia triste: faleceu Zé-da-Zilda, que na linguagem musical proclamava que ‘o mundo inteiro não valia o seu lar’, e que tornara amarguras da vida carioca em reclamação melodiosa no sucesso ‘Saca-rolha’, do último carnaval. Contava ele com 46 anos de idade”.

Ao longo de sua trajetória, Zé-com-Fome demonstrou ser um artista completo. Como músico, cantor e compositor, deixou um impressionante repertório de cerca de 100 canções e lançou mais de 30 discos em 78 RPM. Suas músicas foram interpretadas por grandes nomes da música brasileira, perpetuando sua contribuição à cultura do país.

São de sua autoria, por exemplo, “Império do samba”, “Só pra chatear”, “Pra seu governo”, “Aos pés da cruz” (com Marino Pinto) e mais dezenas de sambas antológicos. Sem contar marchinhas como “Saca-rolha” (com Waldir Machado), a mais cantada no carnaval de 1955, e “Ressaca” campeã no ano seguinte, essa de parceria com a Zilda.

Zé-com-Fome é citado, junto com Heitor Catumbi, como um dos criadores do samba-de-breque. As interrupções súbitas no meio do samba — o chamado breque — para encaixar frases faladas, eram práticas comuns na Mangueira.

Embora sua vida tenha sido interrompida precocemente, sua obra continua sendo um testemunho de sua dedicação e talento. Afinal, não é intrigante pensar como a música de alguém que começou no subúrbio, com um cavaquinho nas mãos de um menino, pôde chegar tão longe e tocar tantas pessoas?

Obrigado Zé.

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Como citar esse artigo — OLIVEIRA, Marcelo. “ZÉ GONÇALVES, ZÉ COM FOME OU ZÉ DA ZILDA: UM SAMBISTA DE RENOME”. In: MEMÓRIA Verde Rosa. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: <https://memoriaverderosa.com.br/ze-com-fome/>. Acesso em: 21/02/2025.

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