Vó Lucíola: orgulho por ter visto tudo acontecer

Lucíola Ribeiro de Jesus nasceu em São Paulo no dia 19 de setembro de 1900 e, ainda bebê, foi trazida para a Mangueira nos braços de sua mãe, dona Lucinda. Chegando à comunidade em 1901, Lucíola mal podia imaginar que um dia se tornaria uma figura icônica, profundamente enraizada na história da mais importante escola de samba do Brasil. Mas sua trajetória inicial não foi fácil. Como muitos que enfrentaram os desafios do morro, sua vida exigiu perseverança e uma forte vontade de seguir adiante, mesmo diante das adversidades. A casa de Vó Lucíola, como passou a ser conhecida, estava localizada no terreno onde hoje se ergue o simbólico Palácio do Samba. Recordando essa época, ela dizia: “Dali guardo muitas recordações. Tudo era muito diferente”. Eventualmente, foi removida para um local mais alto dentro do morro, acima do Largo do Careca. Essa mudança não agradou a todos, e muitos moradores preferiram deixar a Mangueira a viver mais distante do nível do solo. Apesar disso, Lucíola permaneceu, enraizada em sua comunidade. Curiosamente, Lucíola não era uma grande admiradora do carnaval, embora estivesse cercada pela efervescência cultural que o evento proporcionava. Era uma figura discreta, descrita como uma eminência parda nos anos de 1920 e 1930. Sua atuação como parteira — a primeira do morro —, filha de escravos e mãe-de-santo (filha de Xangô), adicionava camadas de profundidade à sua história. Ela teria herdado os dons de sua mãe e, com boa memória e palavras incisivas, manteve-se como uma referência respeitada na comunidade. Lucíola também tinha uma conexão singular com outros grandes nomes da Mangueira. “Minha mãe era dona de terreiro. O Zé Espinguela, um dos fundadores da Estação Primeira de Mangueira, era ‘filho de santo’ de minha tia e meu irmão de santo. Ele ingressou no terreiro com 9 ou 10 anos. Foi ferreiro em São Mateus. Foi o primeiro Ogum do terreiro de Santa Bárbara, mas depois abandonou o santo. Não contou pra ninguém o porquê”, relatava ela. Sua narrativa é um vislumbre da complexa interseção entre religiosidade e cultura na formação da Mangueira. Casada com um operário, Vó Lucíola também trabalhou em uma fábrica de chapéus para sustentar sua numerosa família. Teve 14 filhos, dos quais perdeu sete, mas construiu uma prole que perpetuou sua história e tradições na Mangueira. Seus 48 netos, 52 bisnetos e 12 trinetos são em grande parte foliões apaixonados e, como ela enfatizava, “todos mangueirenses”. Muitos de seus descendentes desempenharam papéis importantes na história da escola: suas filhas Darcléa e Zuleica carregaram o estandarte quando a Mangueira ainda era bloco; suas netas Ircléia e Geovana e as bisnetas Adriana, Gilvana e Anéia mantiveram viva a tradição como porta-bandeiras. Seus filhos homens também se destacaram, como Roxinho, marcador de surdo na bateria, e Dico, que na década de 1960 se tornou locutor oficial da escola. Em 2005, aos impressionantes 104 anos, Vó Lucíola foi homenageada com o prêmio Estandarte de Ouro na categoria de Revelação do Carnaval. Nesse desfile histórico, ela carregou a boneca “Edmilza”, que tinha a mesma idade da escola — 75 anos. Em reconhecimento a seu papel na comunidade, uma creche na Mangueira foi batizada com seu nome: Creche Municipal Vovó Lucíola, localizada na Rua Visconde de Niterói, 1098, Olaria. Ao longo de sua vida centenária, Vó Lucíola acumulou sabedoria e ensinamentos, resumidos em uma de suas declarações mais memoráveis: “O segredo para se viver bem é trabalhar, ter amigos e comer carne de porco”. Com essa simplicidade, deixou um exemplo de determinação, resiliência e dedicação que permanece gravado na história da Mangueira e no coração de todos que tiveram o privilégio de conhecer sua trajetória.

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Como citar esse artigo — OLIVEIRA, Marcelo. “VÓ LUCÍOLA: ORGULHO POR TER VISTO TUDO ACONTECER”. In: MEMÓRIA Verde Rosa. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: https://memoriaverderosa.com.br/vo-luciola/<URL>. Acesso em: 21/02/2025.

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