O Menino que Virou Riqueza

O terreiro da Mangueira não é feito apenas de cimento e ferro. É tecido de memórias que se entrelaçam como as contas das baianas – verdes e rosas que brilham sob o sol de fevereiro, cada uma guardando uma história, cada nó lembrando uma batalha vencida. Aqui, o samba não é apenas ritmo, mas respiração coletiva. O surdo marca o compasso cardíaco da comunidade, o tamborim replica o zunido dos trens da Central, e as vozes que ecoam na quadra carregam séculos de resistência em cada melodia. Esta Escola, que nasceu em 1928, nunca foi apenas uma agremiação carnavalesca – transformou-se em espelho do Brasil, refletindo em seus enredos as dores e delícias de um povo que canta para não chorar. Nesse universo onde a arte se confunde com a vida, Jorge Henrique dos Santos – o Preto Rico – surgiu como personagem fundamental. Sua história começa nas ruas de terra do Campinho, onde o apelido irônico dado pelos amigos de infância (“Quero jogar com o Preto Rico!”) acabou por definir um destino. Operário nas horas diurnas, carregando sacos de merenda escolar com orgulho; poeta nas madrugadas, transformando notícias de jornal em sambas que falavam de crimes passionais e lendas ancestrais. Na Mangueira, encontrou seu verdadeiro lar – ainda que as filhas insistissem em desfilar pelo rival Salgueiro, numa dessas ironias que só o samba sabe criar. Os anos 1970 consagraram Preto Rico como um dos grandes compositores da verde-rosa. Suas vitórias com “Lendas do Abaeté” (1973) e “Mangueira em Tempo de Folclore” (1974) não foram acidentes, mas fruto de uma filosofia simples e profunda: “Não foi preciso, a letra saiu fácil e sem repetições”. Nos botequins próximos à quadra, entre uma cerveja e outra, ele e seus parceiros teciam narrativas que misturavam o sagrado e o profano – como quando incorporou palavras em nagô (“agô” e “agoiá”) num samba sobre o Abaeté, mostrando que a verdadeira riqueza estava no respeito às raízes. Hoje, quando o vento sopra na Estação Primeira, ainda se pode ouvir ecos dessa história. No balanço das saias das pastoras que cantam “Velha Baiana”, no riso dos jovens que repetem seus versos sem saber quem os escreveu, no silêncio respeitoso diante do retrato de Cartola que ele ajudou a colocar na parede. A Mangueira sabe – como poucas instituições brasileiras sabem – que a verdadeira imortalidade não está nos títulos, mas na capacidade de transformar vidas em arte e arte em vida. Quantas gerações cabem num único refrão? Quantas histórias estão escondidas nas entrelinhas de um samba de terreiro? O que faz com que – passados mais de cinquenta anos – “Lendas do Abaeté” ainda arranque lágrimas dos mais velhos e curiosidade dos mais novos? Talvez a resposta esteja justamente aí: na magia que transforma um menino do subúrbio em lenda, uma escola de samba em pátria afetiva, e uma simples batida de pandeiro em batimento cardíaco de uma nação. Esta é a história que vamos desfiar – não como quem conta um fato passado, mas como quem compartilha um segredo ainda vivo. Boa leitura.

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Como citar esse artigo — OLIVEIRA, Marcelo Fonseca de. “O MENINO QUE VIROU RIQUEZA”. In: MEMÓRIA Verde Rosa. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: https://memoriaverderosa.com.br/preto-rico/. Acesso em: 24/04/2025.

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