Mangueira: tão grande que nem cabe explicação

A Estação Primeira de Mangueira transcende o conceito de uma simples agremiação carnavalesca. Ela é o pulsar do povo, a batida do coração que estremece ao vê-la desfilar na avenida. Mais que uma escola de samba, a Mangueira é uma entidade viva, entranhada nas ruas e vielas do morro que lhe deu origem. Sob o nome oficial de Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira, ela floresceu das raízes do Bloco dos Arengueiros.

Contudo, chamar a Mangueira pelo seu nome completo é quase uma formalidade, pois seu verdadeiro título é uma alcunha calorosa, sussurrada com amor e respeito por todos que a conhecem: Mangueira. É uma instituição que transcende os limites geográficos do bairro que a batiza, e suas cores verde e rosa evocam não apenas uma tradição, mas uma identidade cultural que ecoa pelas ruas do Rio de Janeiro e além.

Desde seus primórdios, a Mangueira tem sido mais do que uma mera competidora nos desfiles de Carnaval. Sob a batuta de Juvenal Lopes, seu então presidente, a escola prioriza fazer samba bonito para o povo, mesmo que a vitória nos concursos seja um objetivo almejado. É uma filosofia enraizada na alma da comunidade mangueirense, onde a grandiosidade não reside apenas nos troféus conquistados, mas nas pequenas nuances que tecem a tapeçaria de sua história.

E é na história da Mangueira que encontramos figuras como Neuma Gonçalves, cujo nome está entrelaçado à própria essência da escola. Como uma verdadeira primeira-dama, Neuma personifica a devoção e a dedicação que permeiam cada fibra da Mangueira, desde os dias de glória até os momentos de luta e desilusão. Ela não apenas desfila com a verde-rosa; ela é a própria essência da Mangueira, um símbolo vivo de sua tradição e de sua eterna luta pela excelência no samba.

Assim, a Mangueira transcende as fronteiras do tempo e do espaço, tecendo uma história de paixão, perseverança e orgulho que ecoa nos corações de todos que têm a honra de testemunhar sua majestosa passagem pela Sapucaí.

Você acabou de ler um resumo cativante do artigo publicado no Correio da Manhã em 24/11/1969, escrito por Aroldo Bonifácio. No entanto, há muito mais para descobrir sobre a história fascinante e as personalidades envolventes por trás da Estação Primeira de Mangueira. Convido você a mergulhar no texto original (a seguir) deste artigo para explorar em detalhes a riqueza cultural, os laços comunitários e a paixão que permeiam essa escola de samba. No final da postagem um espaço reservado para seu comentário. Boa leitura e um forte abraço.

Ela é sinônimo de povo. Povo que estremece quando a vê despontar na Candelária. Povo que canta junto até ficar rouco e aplaude até inchar as mãos. Que a acompanha depois do desfile e proclama justiça, quando não a vê em 1. ° lugar no dia da apuração.

GRÊMIO RECREATIVO ESCOLA DE SAMBA ESTAÇÃO PRIMEIRA — Este o verdadeiro nome da famosa escola que todos preferem chamar simplesmente de Mangueira. É a Mangueira que, confundida com o bairro ou com o morro, tem servido de inspiração para melodias que se tornaram inesquecíveis. É a Mangueira, definida por um de seus compositores como “Jequitibá do Samba”, passando, por isso a ser chamada, por muitos, de “Madeira de dar em doido” e que tem realmente, uma existência gloriosa como sonharam seus fundadores.

Mas glória maior da Mangueira é, como afirma seu presidente, Juvenal Lopes, fazer samba bonito para o povo, sem a preocupação principal da vitória nos desfiles em que pese existir também a vontade de ganhar, “pois ninguém vai competir desinteressado pelo triunfo”. E nem a majestosa exibição que a escola fez no ano passado, especialmente para a rainha da Inglaterra, na embaixada britânica, supera este ponto de vista dos mangueirenses, que têm seu mundo naquele morro. São esses detalhes, considerados pequenos pelos sambistas da Mangueira, que revelam a grandiosidade da escoIa — como diz Paulinho da Viola: “tão grande que nem cabe explicação”.

Muitos blocos na origem

Existem controvérsias sobre a data de fundação da Estação Primeira. Dados oficiais da escola dão conta de que foi a 28 de abril de 1928, mas o trabalho de alguns pesquisadores1 que se dedicam às coisas do samba revela ter sido um ano depois, isto é, 28 de abril de 1929, após ter surgido no Estácio a Deixa Falar.

A escola teve origem no Bloco dos Arengueiros, fundado no morro de Mangueira, no carnaval de 1927. Mais tarde, o Arengueiros absorveu vários outros blocos existentes nas adjacências. Eram eles da Tia Tomázia, da Tia Fé, do Senhor Júlio, do Mestre Candinho e, ainda, o Rancho Príncipes da Floresta. Os fundadores da Mangueira foram, entre outros, Saturnino Gonçalves, o Satur, seu primeiro presidente, Pedro Caim, Joaquim Bernardo, o Sapateiro, Marcelino José Claudino, o Maçu, primeiro mestre-sala da escola e várias vezes seu presidente, Angenor de Oliveira, o Cartola, Jorge Candinho, Francisco Ribeiro, o Chico Porrão, sócio n.°1 da escola, Carlos Moreira de Castro, o Carlos Cachaça, Artur Faria, Lauro dos Santos, o Gradim, e José Spinelli, idealizador do primeiro concurso de escolas de samba.

As cores verde e rosa que tiveram imediata aprovação, foram sugeridas por Cartola, em homenagem às pastorinhas e ranchos que, na época, existiam nas Laranjeiras, e que tinham aquelas cores. O nome Estação Primeira foi dado pelo povo da cidade, que costumava comparecer à Mangueira para ver Cartola cantar seu samba “Chega de demanda”, solicitação para que fosse terminado o litígio existente entre os sambistas de Mangueira e do Estácio. Para quem seguia de trem para gare d. Pedro II, Mangueira era a primeira estação em que o comboio fazia parada, advindo, daí, a denominação Estação Primeira. Quanto à designação de Mangueira para aquela estação, uns dizem que foi em razão da existência ali, da fábrica de chapéus Mangueira, enquanto outros afirmam que foi devido à grande quantidade de mangueiras existentes no morro.

Bons enredos, boas colocações

Participante de todos os desfiles carnavalescos, a Mangueira é detentora de onze títulos de campeã, sendo nove oficiais e dois extra. Dentro da série, foi uma vez tricampeã, com as vitórias conquistadas nos anos de 48, 49 e 50, quando o samba estava dividido e havia dois desfiles. A Império Serrano, participante do outro desfile, também foi campeã naqueles anos. Por três vezes a Estação Primeira foi bicampeã. Isto se deu nos carnavais de 32/33 (extras) 60/61 e 67/68. Isoladamente, vitoriou-se nos anos de 1940 e 1954, enquanto sua pior colocação nas competições foi o quarto lugar obtido nos desfiles de 1962 e 1965.

A escola, pelo que revelam seus arquivos — incompletos — apresentou-se nos desfiles com os mais sugestivos enredos, que lhe valeram sempre boas colocações. Em 1931, quando não houve competição a verde-rosa apresentou o tema “Jardim da Mangueira”, e nos dois anos seguintes conquistou os campeonatos extra, apresentando, respectivamente, “A floresta” e “Uma segunda-feira no Bonfim na Bahia”. Em 1934, a Mangueira desfilou apenas para o povo, tendo a Recreio de Ramos sido a campeã. Com o enredo “A pátria”, ficou no segundo lugar em 1935. No carnaval seguinte, a vitoriosa foi a Unidos da Tijuca. Os arquivos da Mangueira não dizem qual a sua colocação, o mesmo ocorrendo em relação ao desfile de 37, cuja campeã foi a Vizinha Faladeira. Em 38 não houve desfile, e em 39 a escola foi a segunda colocada. Em 40 surgiu como campeã, sendo vice em 41. Os enredos desses anos são ignorados. “A vitória do samba nas Américas”, foi o tema apresentado em 42, mas a escola desconhece qual a classificação obtida. Em 43 foi vice-campeã, com enredo também ignorado. No carnaval do ano seguinte não houve desfile, e no de 45 a Mangueira apresentou-se com “Nossa história”, obtendo o segundo lugar. Do carnaval de 46, a escola nada sabe sobre enredo e colocação, enquanto do de 47 sabe, apenas, ter sido a segunda colocada. No carnaval de 48, que marcou a despedida de Cartola, a Estação Primeira voltou a ser campeã, com o enredo “Vale do São Francisco”, feito que repetiu em 49, com tema não lembrado, e também em 50, marcando o tricampeonato com “Plano Salte”.

A partir de então os arquivos da Mangueira foram atualizados e mostram que, em 51, com “Unidade nacional”, foi a terceira classificada, colocação que repetiu em 52 e 53, com “Gonçalves Dias” e “Caxias”, respectivamente. No desfile de 54, mais uma vez vice-campeã, com o enredo “Rio de Janeiro”. De 55 a 59 a escola classificou-se no terceiro lugar, com os enredos “Quatro estações do ano”, “Exaltação a Getúlio Vargas”, “Emancipação nacional”, “Canção do exílio” e “Brasil através dos tempos”. No biênio 60/61, novo bicampeonato com “Carnaval de todos os tempos (Glória ao samba)” e “Rio antigo”. “Casa grande e senzala” foi o tema do carnaval de 62, tendo a escola se classificado em quatro lugar, com “Exaltação à Bahia” foi vice-campeã em 63. Desfilando em 64, com “História de um preto velho”, ficou na terceira colocação, e na quarta, no ano seguinte, com o “Rio através dos séculos”. Uma das maiores injustiças dos desfiles do samba, aconteceu, em 1966, quando a Mangueira apresentou “Exaltação a Villa-Lobos” e não passou do vice-campeonato. Mas em 67 foi a campeã, com “Monteiro Lobato”, bisando em 68 com “Samba, festa de um povo”. Apresentando, no carnaval passado “Mercadores e suas tradições”, perdeu o tricampeonato para o Salgueiro, ficando com a segunda colocação.

Neuma, um capítulo à parte

Quando se fala na Estação Primeira, não se pode omitir Neuma Gonçalves, pessoa cuja vida está intimamente ligada à escola. Filha de Saturnino Gonçalves, fundador e primeiro presidente da Mangueira, Neuma, desde os sete anos é figurante da verde-rosa. Dedicando-se à escola como se dedica à própria família, jamais se negou a colaborar, em qualquer sentido, quando solicitada. Esteve presente nas grandes vitórias da Mangueira e também nas horas amargas de decepção. Só não desfilou no carnaval de 1966, devido a morte, dias antes, de seu filho Montinho.

No morro, seu prestígio é incomparável, já tendo até recebido o título de “Primeira-dama da Mangueira”. Costumam dizer que sua casa é a “sala de visita do morro”, não apenas pelo fácil acesso, mas, principalmente, pela fidalguia com que recebe a quantos ali aparecem.

Casada com Alcides Bernardino da Silva, outro mangueirense muito querido, Neuma é mãe de três filhas, todas excelentes sambistas. A mais velha, Chininha, é presidente da Ala das Impossíveis, composta por 18 graciosas mulatas e a mais bem organizada da escola. As mais novas, Cecy e Guezinha, já foram porta-bandeiras mirins. Atualmente fazem parte da ala de Chininha. Neuma tem ainda duas netas, filha de Cecy. A mais velha, com dois anos incompletos, já dá alguns passos como sambista e canta o samba-enredo que a escola apresentou no carnaval passado. A outra, nascida na última quarta-feira, deverá, como desejam os avós, ser também passista da verde-rosa.

Neuma dirige, no momento, o departamento feminino da escola, com a ajuda de Zica, esposa de Cartola, e outras antigas pastoras. Na última sexta-feira, Neuma teve outra consagração no cenário do samba. Recebeu, no ginásio, do Maxwell, em festa promovida pela Acadêmicos do Salgueiro, a faixa de “Madrinha dos Destaques das Escolas de Sambas”.

OS FAMOSOS

Delegado e Neide, mestre-sala e porta-bandeira, estão entre os melhores e os mais famosos da cidade. Empunhando o pavilhão da Estação Primeira e dançando com garbo, sempre conseguiram pontos que contribuíram para as vitórias da escola.

Delegado, um preto alto e magro, tem o corpo esguio como o velho Maçu, primeiro mestre-sala da verde-rosa e que, em sua época, era a sensação entre os sambistas. Outros que o sucederam no posto também foram famosos e sempre fizeram jus aos aplausos recebidos tanto na praça Onze como em outros locais por onde desfilaram. Entre os principais sucessores de Maçu e antecessores de Delegado estão Arlindo Conrado, Jorge Rasgado, Mário Malandrinho, Denezô, Arildo e outros.

Neide também reúne excepcionais qualidades para a missão que desempenha na escola. Não chega a ser bonita, mas agrada com sua simplicidade e simpatia, principalmente quando, rodopiando ou gingando o corpo com inconfundível cadência, mostra seu valor de sambista autêntica. Neide descende de uma tradicional família de porta-bandeiras, e foi treinada por sua tia Lina, segunda porta-bandeira da verde-rosa.

Poetas descem o morro

Uma das tradições da Mangueira está em sua ala dos compositores, que sempre revelou para o cenário da nossa música autênticos poetas, como é o caso de Cartola, um dos fundadores da escola. Batizado Angenor de Oliveira — é realmente Angenor e não Agenor como muitos pensam — Cartola, que depois de compor “Divina dama”, foi, durante algum tempo, chamado, também de “Divino”, tem sido, através dos anos, com sua humildade, um espelho para várias gerações de compositores mangueirenses. Tendo mantido por alguns anos o restaurante Zicartola, teve a seu crédito mais um grande serviço prestado à nossa música popular. Ajudado pela esposa, o sambista montou, despretensiosamente, o estabelecimento cuja finalidade principal era reunir seus amigos em noites alegres onde, ao som de seu violão, todos pudessem cantar seus sambas e comer os quitutes caseiros preparados pela Zica.

O lugar, em pouco, se tornou conhecido e famoso, revelando para o cenário musical cantores e compositores como Zé Kéti, Élton Medeiros, Paulinho da Viola, Zé Cruz, Nescarzinho, Jair do Cavaco e muitos outros.

Outro que continua sendo venerado pela Estação Primeira é Carlos Moreira de Castro, o Carlos Cachaça, contemporâneo de Cartola e também fundador da escola. Seus sambas, inclusive os de enredo, são tidos, por todos que militam na Mangueira como obras-primas. Também Lauro dos Santos, o Gradim, falecido há tempos, esteve em plano de igualdade com Cartola e Carlos Cachaça e foi, inclusive, fundador da escola.

Mantendo a tradição, a Mangueira vem, de ano para ano, revelando novos poetas, cujas melodias têm ficado famosas na cidade e no País. Das diversas safras, podemos citar, entre os que ainda vivem, José Ramos, atualmente representando a escola junto à Associação das Escolas de Samba do Estado da Guanabara, Nélson Cavaquinho, Brogogério, Leléu, Preto Rico, Hélio Turco, Finca, Naciste, Ataliba, Zagaia, Xangô, Padeirinho, Darcy, Geraldo das Neves, Jurandir, Comprido, Sargento e muitos outros, Dos falecidos, além de Gradim, Zé da Zilda, mais conhecido na escola por Zé Com Fome, e que chegou a ser um dos mais famosos cartazes da radiofonia carioca, Geraldo Pereira, com suas “Falsa baiana” e “Isabel”, Zé Casadinho, Cláudio de Oliveira e Alfredo Português não podem ser esquecidos.

ASCENSÃO COM JUVENAL

Além de Saturnino, primeiro presidente da escola, os que mais se destacaram na presidência da escola foram Hermes Rodrigues, também conhecido por Ministrinho, Roberto Ludolf Paulino, o Robertinho da Cerâmica, Manuel Fernandes, o Beleléu e Juvenal Lopes, atualmente no cargo. Na gestão Juvenal Lopes, a Mangueira teve uma ascensão vertiginosa. Reeleito uma vez, Juvenal deverá deixar o cargo em maio vindouro. Está esperando afastar-se da presidência com mais uma vitória. Escolheu, para o próximo carnaval, um tema “quente” do agrado de todos: “Um cântico à natureza”. O idealizador chama-se Augusto de Almeida, e é a pessoa que foi contratada pela escola para confeccionar as alegorias. Os figurinos, bem originais, são criação de Aélson. Administrativamente, a Mangueira já tomou todas as providências para o carnaval. Desde o último sábado, a ala dos compositores está apresentando os sambas do enredo, cuja escolha final deverá acontecer antes do fim do mês, quando então, a Estação Primeira iniciará, em definitivo, os preparativos para o superdesfile de 1970.

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  1. O jornalista Sérgio Cabral em seu livro “Escolas de Samba do Rio de Janeiro” (Lumiar, 1996), afirma que a verdadeira data de fundação da Estação Primeira de Mangueira é 28 de abril de 1929. Isso difere em um ano da história oficial da escola. Cabral apresenta em seu livro um documento oficial da Mangueira, datado de 1939, onde consta a data de fundação como 28 de abril de 1929, impresso no papel timbrado da escola com o nome “Escola de Samba Estação Primeira”. Os documentos citados por Cabral foram obtidos do arquivo pessoal do radialista Almirante (Henrique Foreis Domingues) e incluem cartas enviadas à direção da escola, datadas de janeiro e abril de 1939. ↩︎

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