
As manhãs eram frias nos subúrbios do Rio, mesmo quando o sol já tocava com firmeza os telhados de zinco. As calçadas ainda dormiam sob a névoa fina, enquanto os primeiros ruídos do dia começavam a emergir: o apito do trem na Central, o pregão rouco do jornaleiro, o ranger metálico das bicicletas que levavam os operários para as fábricas. Havia um tempo em que a cidade despertava assim, em compasso com a lida dos que viviam longe dos holofotes, longe dos salões, longe da glória. Era um tempo em que o silêncio dizia tanto quanto o batuque — e, muitas vezes, mais. Na alma desses bairros, o samba corria pelas vielas como se fosse parte do ar. Não o samba de passarela ou de espetáculo — mas o samba da esquina, da gafieira, do terreiro improvisado com banquinho e cavaquinho. Um samba nascido do improviso, da ausência e da saudade, embalado pelas rádios que sussurravam ao fundo e pelas histórias contadas com as mãos, com os olhos, com a voz. Era nesse ambiente que se moldavam os cantores, não como produto da técnica ou do mercado, mas como resultado direto da necessidade de dizer o que a vida calava. Nem sempre havia palco. Às vezes, bastava a calçada, a quina de um bar, a beira de um campo de pelada. Nem sempre havia microfone. A voz precisava chegar inteira, atravessar a fumaça, o riso, o rumor das madrugadas. E quando a voz era firme, retumbante e sincera, ela abria caminho. À força. Na raça. Sem pedir licença. Era assim com aqueles que não esperavam convite para cantar — apenas assumiam a canção como parte do corpo, como se cantar fosse continuar respirando. Mas havia algo além da voz. Um traço no olhar. Uma contenção nos gestos. Uma tristeza que não buscava piedade, só respeito. Um tipo de silêncio que se impunha, mesmo quando a música era alta. Não era carisma de palco, tampouco domínio de cena. Era outra coisa: a autoridade que vem da vivência, do chão duro, do corpo gasto. Era o samba que saía da boca de quem nunca o cantou para agradar, mas para existir. E foi assim que ele surgiu. Primeiro menino, depois homem, depois símbolo. Ninguém o moldou. Ele é que moldou a forma de cantar uma escola, um tempo, uma história. De São Cristóvão ao Engenho Novo, da Rádio Tupi à Sapucaí, a voz dele carregava não só o canto, mas também a cidade. E se um dia a Mangueira teve coração, foi com ele que aprendeu a ter voz. É hora de ouvir — e de reverenciar — Jamelão. Nos parágrafos a seguir, mergulhe na história do homem, do artista, do intérprete que atravessou gerações sem nunca desafinar diante da vida.
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Como citar esse artigo — OLIVEIRA, Marcelo Fonseca de. “PUXADOR NÃO! INTÉRPRETE”. In: MEMÓRIA Verde Rosa. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: https://memoriaverderosa.com.br/jamelao/. Acesso em: 29/06/2025.
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