Carlos Cachaça, ano 75. Sou o arquivo, a biblioteca da Mangueira

No dia 6 de agosto de 1977, o Jornal o Brasil traz uma homenagem especial aos 75 anos de Carlos Cachaça, ícone da música e da cultura carioca, através de uma crônica assinada por Mara Caballero. Comemorado de forma animada e repleta de simbolismo, o aniversário de Cachaça, celebrado no sábado anterior, reflete a riqueza e a simplicidade de sua vida. Residente no Buraco Quente, próximo à quadra da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, Cachaça é retratado em seu ambiente íntimo, rodeado pela cor verde e rosa, e aguardando a festa que une amigos e admiradores. O texto revela um retrato afetuoso e nostálgico de um homem que, apesar das dificuldades e das reviravoltas da vida, mantém sua paixão pela música e pelo samba, e cuja história é entrelaçada com a evolução e as memórias da Mangueira. O relato de Mara Caballero oferece uma visão detalhada da trajetória de Cachaça, desde seus primeiros passos na música até seus desafios e conquistas, destacando sua conexão profunda com a cultura e a comunidade que tanto valoriza. Boa leitura.

Carlos Cachaça completou 75 anos na quarta-feira, dia 3. Mas a comemoração será hoje, pois é sábado, dia que recomenda uma festa com muitos amigos, muita cerveja, muitos músicos e cantores, e a “totalidade da Mangueira”. Enquanto preparam a festa, Carlos Cachaça fica em casa, tranquilo. Poeta. Sua casa fica no Buraco Quente, perto da quadra da escola e da casa de seu parceiro Cartola e de sua cunhada Zica, que aponta: — Depois dessa rua tem um portão grande. É lá no fundo. Verde e rosa. Nas roupas do varal, do lado de fora.

O poeta está sentado no sofá de plástico, lendo jornal e esperando o barbeiro que prometeu trazer umas Antárticas: “Está mais difícil de encontrar do que feijão”. Um olhar mais atento e percebe-se que, dentro, as paredes são creme, o sofá e as poltronas vermelhos. Mas tudo parece verde e rosa, tanto o tapete, bordado, toalhinha, flâmula, almofada e enfeite nas duas cores, espalhados pelas paredes e sobre os móveis de madeira clara, pernas palito. Forte, corpo rijo, Carlos conversa horas seguidas, contando histórias com clareza, de vez em quando comentando a falta de cerveja. — Tomo assim… umas 15 garrafas por dia. E não tenho barriga, não. Interessante, né? Estou me sentindo muito bem aos 75 anos. Só tenho um pouco de insônia, mas isso é desde menino. Nenhuma doença. No máximo uma dor de cabeça e veja só… nessa idade… dor de dente. Eu ainda tenho dentes naturais.

As frases de Cachaça são constantemente interrompidas pelo telefone que não para de tocar. Todo mundo quer saber da festa, confirmar, perguntar se pode levar um cunhado que toca violão. As festas de aniversário de Carlos Cachaça são famosas. Durante sete anos foram realizadas na Ilha do Governador, “quando três ônibus levavam o pessoal e iam cinco conjuntos de música, todos voluntários”. Ano passado, foi na quadra da Mangueira, também lançamento do seu primeiro LP, ainda à venda. Desta vez será na casa da filha, em Engenho da Rainha. Menininha — Clotilde nos documentos e irmã de Zica — sua mulher desde 1921, está lá cuidando dos preparativos. — Foram levar numa Kombi vários caixotes de Antártica. Também vai ter chopp e Brahma. Aí a Menininha aproveitou para levar caldeirão e tudo, e foi junto.

Pelas lentes verde-claras dos óculos, Carlos lança um olhar através da porta, passa pela varanda com samambaias, tinhorões, espadas-de-São-Jorge e guinés-pitui plantados no jardim suspenso, passa pelo portão e alcança o viaduto da Mangueira, bem em frente, onde as crianças desafiam os carros atrás das pipas.

Viaduto é coisa ligada ao compositor. Nasceu debaixo de um, “onde havia casas que a Central emprestava a seus funcionários”, lá mesmo em Mangueira. Não em 1901, como dizem alguns, mas um ano depois, como comprova a identidade, que mostra imediatamente. Foi ferroviário, filho de ferroviário da mesma Central do Brasil. — Um dia veio um crioulo alto e me disse: Você tem o mesmo nome — Carlos Moreira de Castro — de um pagador aqui da Central. Alguma ligação? Era meu pai. Aí foi aquela festa, meu pai era muito prestigiado. Mas a essa altura eu também já tinha um cargo importante na Central. Nem para entrar lá, nem para subir de posto, revelei de quem era filho.

Antes de conseguir o emprego estável que lhe deu a aposentadoria, fez muito biscate. Só foi entrar para a Central em 1927, já com o primeiro filho nascido. Hoje tem três: Ilko, José Carlos e Maria Inês. Se a vida foi dura para ele naquele tempo, foi por pura honestidade sua: aos seis anos ficou aos cuidados de Tomás Martins, português sem filhos, muito rico, arrendatário do Morro da Mangueira (o proprietário era Saião Lobato) e “fundador da favela”. — Ele alugava terreno para pastagens de gado, para carroças. Depois foi alugando barracos para uns parentes afins, e a coisa foi aumentando. No princípio eram umas 50 casas. Em 1910 encheu muito. Foi quando desfizeram o 13º Batalhão de Cavalaria, que ficava na Quinta da Boa Vista. Veio todo mundo para cá. Um deles foi mestre Candinho, tenente que depois formou um bloco. Sua casa ficava onde hoje é a quadra da escola. No outro dia apareceu um neto dele, que mora ali adiante. Veio me mostrar um recibo assinado por mim. Meu padrinho não sabia ler nem escrever. O recibo tinha data de 1914. Veja só… não tinha nenhum valor jurídico. Agora Mangueira tem 50 mil habitantes. Entre Pindura a Saia, Santo Antônio, Faria e Saião Lobato, que tem por apelido Buraco Quente.

Carlos ri, malicioso. — Havia aquelas quenturas aos domingos, aquela brincadeira. Pastorinha, samba, festa junina. Sempre tinha um movimento. Na época era pacífico. Agora, já viu, né? De acordo com o progresso…

A escola só foi fundada em 1928. O que havia pelo morro eram, entre outros, os blocos de mestre Candinho, de tia Tomásia, de tia Fé: — O samba da Mangueira nasceu na casa desta última. O meu primeiro desfile foi lá. Quem trouxe o samba para a Mangueira foi o Elói Antero Dias, mais tarde presidente da Portela. Ele incrementou o samba de terreiro. Cantava na casa de tia Fé, depois vinha para o Buraco Quente fazer roda de samba. Foi na Primeira Guerra Mundial, 1915 mais ou menos.

Em 1912, seu pai morreu. Carlos estudava na Escola Humanidades, na Avenida Rio Branco: “A escola era de uns parentes afins do padrinho, eu chamava todo mundo de tia”. Em 1921, o padrinho morreu. Dois anos depois — “mais ou menos” — o primeiro samba. Carlos levanta as sobrancelhas, enruga a testa e canta na voz baixa, rouca, quase mastigando as palavras: — Não me deixastes ir ao samba em Mangueira / e tu saístes para brincar no candomblé… Nesse tempo não havia segunda parte. Era improviso. Antonico, que veio do Estácio, irmão de criação de Saturnino Gonçalves (este, primeiro presidente da Mangueira e pai de Neuma) foi o criador da segunda parte. Todo mundo já cantava o meu samba. Aí, baseado no Antonico, fiz a segunda parte.

A escola de samba foi fundada em 1928. Carlos Cachaça, um dos fundadores, embora no dia da assinatura da ata não estivesse presente: — Quando eu trabalhava na Central passava uns dias fora. Estava para os lados de Paracambi. Dos Arengueiros, surgiu a Estação Primeira. Não sei por quê: é a quarta estação. Entre os fundadores estavam Cartola, Massu, Zé Spingheli.

— Qual o seu primeiro samba-enredo cantado num desfile?

— A história não conta muito bem. Quando as coisas começam a ter certa importância, aparecem muitos donos. O primeiro samba-enredo com história foi em 1934. “Castro Alves”. Até então não se falava em vultos históricos. Falava-se em mulher e paixão. Quatro anos depois, na Feira Internacional de Amostras, apresentei o samba. Aí disseram que era de 1938. Não era.

Vem a voz rouca, soltando poesia: — “Recordar Castro Alves, Olavo Bilac e Gonçalves Dias, / e outros imortais que glorificaram a nossa poesia. / Quando eles escreveram matizes de amor, / talvez nunca pensassem em ouvir os seus nomes num samba um dia.”

Nesse ano, 34, a Mangueira nem desfilou: — O delegado Dulcídio Gonçalves mandou apagar as luzes do coreto da Praça 11. Depois de uma hora da manhã, ninguém desfilava mais. Todo mundo dizia: a Mangueira está uma beleza. Mas não adiantou.

Quatro anos depois, a chance de mostrar o samba-enredo. O concurso envolvia todas as escolas e desde o princípio as coisas foram contra Carlos Cachaça. Primeiro, o “cabo eleitoral” dele, o presidente da escola, Pedro Palheta, brigou com a diretoria e apareceu com os votos na redação do jornal A Pátria, patrocinador do concurso: — Na antevéspera começaram a catar meus votos por aí, e consegui ficar em décimo lugar. Só 10 concorriam. Só tinha cantor bom, tudo com apelido: Gogó de Ouro, Rouxinol não sei de que, Patativa. E não tinha microfone, era na base da acústica. O conjunto não foi, e eu fiquei na base do pandeiro e tamborim. Para completar, enquanto eu cantava, o presidente de uma escola (não digo o nome porque até hoje sou amigo da família) foi dizer para o júri que eu estava alto. Eu tinha bebido uns conhaques do lado de fora, mas não estava alto. O resultado: Eu tinha bebido uns conhaques do lado de fora, mas não estava alto. O resultado foi dado em ordem decrescente e eu esperando meu nome vir logo, entre os últimos. Quando disseram o nome do segundo lugar e eu vi que ganhara o primeiro, nem acreditei. Acabou que esse que me pichou no júri me contou a história, pressionado por Mocinho, amigo meu, e acabamos festejando minha vitória na escola dele.

Em sua casa, Carlos Cachaça é “pedreiro, pintor, engenheiro”. Na verdade, plantou uma amendoeira e fez um anteparo para proteger a casa do sol e do vento. Mas uns raios teimam em chegar à sala e bater no grande espelho, nos vasos de porcelana com flores de plástico, nas jarras de cristal colorido, no diploma de primeiro lugar na Feira Internacional de Amostras, em 1938.

— E a parceria com Cartola?

— Fomos criados juntos. Ele veio para a Mangueira depois da gripe espanhola, 1920, por aí. Fizemos mais de 30 sambas juntos. No último ano, antes de deixarmos a escola, em 1948, fizemos o samba que foi para a avenida: “Vale do São Francisco”. A última música juntos acho que foi “Tempos idos”, por volta de 1952. Depois paramos. Outro samba para desfile que eu ganhei foi em 1940, “Lacrimário”, ensaiado em 15 dias. Cartola estava em São Paulo.

— Por que se afastou da escola?

— Por motivos de trabalho: estava muito ocupado na Central. Dizem que foi política, mas não foi.

— O apelido veio de tanto beber cachaça?

— Nem tanto. Na Praça 11 morava o Tenente Couto, do Corpo de Bombeiros. Era um terreno grande na Rua Senador Eusébio. Todo domingo havia festa lá: feijoada. Iam também vários compositores de valsa famosos. Todo mundo com intenção nas três filhas do Tenente. Só Carlinhos eram três. Como feijoada desce melhor com cachaça, eu ficava no canto bebendo a minha e o apelido saiu: Carlos, o da Cachaça. Agora tomo mais cerveja e, de vez em quando, um quente. Para não resfriar.

O telefone toca mais uma vez. Tentam passar um trote em Carlos. Quem é, quem não é: — Ah… era a Zica, mudando a fala. Queria saber se vocês tinham acertado o caminho daqui de casa.

De Mangueira, Carlos Cachaça não sai mais:

— Morei uns tempos no Engenho da Rainha, mas agora não saio mais daqui. Não há riqueza material, mas há riqueza moral. O que eu peço, vai sempre um buscar. A gente se sente feliz assim. Fico conversando com meu compadre Nelson Cavaquinho, relembrando: a gente nem dormia, todo mundo já foi embora e nós estamos aqui.

— Farreavam muito?

— Demais. Eu e Cartola tomávamos muita cana. Cerveja só tinha Cascatinha, muito cara. Coisa de rico.

— E a Menininha, o que dizia?

— Nada. Ela é da política.

Este ano, Cachaça e outros companheiros voltaram a desfilar. Na comissão de frente, nota 10. Mas Mangueira ficou em sétimo lugar. Ano que vem, Cachaça volta à Avenida:

— Para não dar demonstração de fraqueza. Senão, vão dizer: se Mangueira ganhasse, ele desfilava de novo. O enredo deste ano é dos tempos dos carroceiros do Império à escola atual. Às vezes vêm me perguntar como era: não há nada registrado, eu sou o arquivo, a biblioteca. Mas do tempo do Império eu não me lembro. Sou da República.

Na parede, uma imagem de Santa Bárbara com lamparina e flores vermelhas; três quadros a óleo — um de Iemanjá — vários diplomas: da ala dos compositores da Mangueira, do III Simpósio de Samba, em 1969, e outros; um prato com o escudo do São Cristóvão: — É o time de todo mundo daqui, do pessoal mais velho. Todos batiam bola lá… Se Menininha estivesse aqui já teria ido comprar cerveja.

Num domingo desses, Menininha pediu a Carlos para comprar pão, “dos miúdos”: — Mas a padaria fechou. Na verdade, eu me esqueci. Quando cheguei, tempos depois, ela me perguntou: cadê o pão? Não trouxe, respondi, mas comprei estas flores vermelhas para sua Santa Bárbara. Aí ela disse: que beleza.

Carlos sai. Não diz, mas adivinha-se: está na “hora da cervejada”, no barbeiro.

Mara Caballero

Texto transcrito do Jornal do Brasil, 6-8-77. Caderno B, p.5.

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