Em 6 de agosto de 1974, o Jornal do Brasil publica uma crônica de Juarez Barroso que imortaliza o aniversário de Carlos Cachaça, um dos grandes nomes do samba carioca e parceiro de Cartola. Celebrando seus 72 anos, Cachaça protagoniza uma festa que transcende a simples comemoração, reunindo um vasto leque de amigos, admiradores e personagens da comunidade em um ambiente de confraternização vibrante e inclusiva. No coração da Mangueira, a festa reflete uma rara oportunidade de conexão comunitária e resiliência cultural, oferecendo um vislumbre da autenticidade e do calor humano que definem o bairro. A celebração, marcada por uma decoração verde-rosa e acompanhada por angu e samba, é descrita como uma reminiscência das tradicionais festas baianas, desafiando o isolamento urbano com uma vitalidade coletiva que resiste ao progresso e à fragmentação social. Barroso captura a essência da festa, desde a chegada de Cartola até os momentos de alegria e música que se estendem noite adentro, destacando a importância de Cachaça como um elo entre o passado e o presente da cultura sambística. Vamos ao texto:

A festa, há mais de 10 anos, é um dos principais acontecimentos do calendário cívico da Mangueira, reunindo o pessoal do morro, amigos do homenageado e gente afetivamente ligada ao samba. Trata-se da festa de aniversário do ferroviário aposentado Carlos Cachaça, ligado às origens das escolas de samba, cunhado e parceiro de Cartola, que no sábado comemorou 72 anos de idade. Trata-se de uma grande confraternização, aberta a quem chegar, convidado ou não, sem hora para terminar, lembrando as festas das famosas baianas do Rio antigo, que, segundo os cronistas da época, duravam até uma semana. No quadro de desagregação e fragmentação comunitária que caracteriza a grande cidade, o aniversário de Carlos Cachaça reflete uma realidade inteiramente diversa. Os amigos da casa encontram angu e samba; um especialista em comportamento encontraria a oportunidade de constatar que o Rio tem — ou ainda mantém — formas de viver resistentes às violências urbanas, uma vitalidade grupal que, embora baseada na pobreza comum, não deixa de ser, por isso, uma lição de convívio humano.
A casa é verde-rosa, como a de Cartola, uns 100 metros adiante, na Visconde de Niterói, no Buraco-Quente, com seus botequins e suas duas barbearias — subida do morro — servindo como divisor geográfico entre dois grandes patrimônios da Mangueira. Carlos Cachaça mora um pouco recuado. Partindo da Visconde de Niterói, caminha-se entre seis ou oito casas que, na Mangueira, convivem sem qualquer preocupação de alinhamento, acomodando-se como podem no espaço reduzido, até chegar ao sobrado do poeta, portas abertas para convidados e auto convidados do aniversariante, centenas de pessoas alternando-se em idas e vindas. A cozinha, onde fervem os panelões de angu, é o fim do roteiro.
Afável e compenetrado, o poeta Carlos Cachaça, ferroviário aposentado, recebe os cumprimentos pelos seus 72 anos de idade, todos vividos na Mangueira. A fauna é variada — gente do morro, compositores lá de cima e de baixo, da cidade, jornalistas, políticos. Um velho advogado, com mais de 40 anos livrando da justiça os filhos mais irrequietos do morro, já chegou bem dosado de batidas, circula discursando e lembrando trechos de samba, enquanto mastiga a dentadura que teima em cair.
Um senhor bem-apessoado, nutrido, de óculos, recebe o jornalista com o mais caloroso aperto de mão e o mais amplo sorriso, como se tivesse vindo ali apenas para encontrá-lo. O jornalista corresponde à altura, dá inclusive um tapinha no ombro do personagem, embora não consiga reconhecer aquele fraternal amigo. Pergunta depois a Jota Efegê1, colega mais velho e especialista no Rio do presente e do passado, quem é a simpática figura.
— É o Mário Saladini, deputado.
Obrigado, deputado, pela simpatia e pela carteirinha de plástico para documentos, com vosso nome gravado, fartamente distribuída. Muito útil.

Copos de batida de pêssego, de limão, garrafas de cerveja circulam pela sala, presidida por Santa Bárbara, ou Iansã, em seu altar, com comida de santo aos pés. Abaixo de Santa Bárbara, espalham-se pelas paredes um retrato grande do dono da casa, o quadro de uma menina em paisagem de lagos e cisnes, outro de um baile numa corte do século XVIII, vários diplomas de honra ao mérito conferidos ao sambista Carlos Cachaça, um prato decorativo com o escudo do São Cristóvão, e do teto pendem bolas de borracha multicores, compondo o ambiente em que a presença da televisão, do ventilador e do telefone proclama uma relativa tranquilidade financeira.
A chegada de Cartola, concunhado do dono da casa e seu parceiro em tantos sambas desde os idos de 30 (tem aquele que diz “Semente de amor eu sei que sou desde nascença”), é saudada com entusiasmo. Cartola sorri, em total disponibilidade para os abraços, vivendo o sucesso de seu primeiro LP individual, que está chegando às paradas.
Passam os panelões de angu sob o comando de Zica, mulher de Cartola, e a convocação para o almoço desloca a primeira leva de convidados para as mesas grandes, armadas lá fora. Parece muita gente para pouca mesa, mas meio minuto depois, todo mundo está sentadinho, ninguém deslocado de seu grupo. Alguém da cidade comenta:
— Em casa de grã-fino esta arrumação ia durar uns 10 minutos.
Um conjunto de choro — bandolim, três violões, entre estes um senhorial sete cordas — interpreta Pixinguinha, o “Flor do abacate” e o “Doce de coco”, de Jacob.
— Cartola, quem é esta raça?
— É daqui mesmo, do Pendura-Saia.
O angu vai na metade quando Carlos Cachaça se aproxima dos instrumentistas. Pede uma introdução e anuncia que vai cantar um samba pátrio, gênero bem apropriado para seu estilo de rimas e construções caprichosas (“é um relicário, extraordinário”), estilo que tanto ilustrou os desfiles da Mangueira desde 1934, ano de seu primeiro samba-enredo para a escola. Impossível o silêncio total para os versos de Carlos Cachaça em seu samba pátrio:
Eu tenho orgulho
de ter nascido
aqui no Brasil
e a paz que encerra
no seio esta terra
me obriga a cantar
enquanto eu ouço
o grande alvoroço
febril do universo
quero nestes versos
ó pátria querida,
teu nome exaltar
O advogado continua a discursar. Três, quatro horas da tarde, cinco horas, as figuras nas mesas renovam-se continuamente, angu, cerveja e batida multiplicam-se para os recém-chegados. A gente do samba comparece: Elton Medeiros está lá desde cedo, está Neusa Fernandes, que levou o samba — vivo — para o museu da cidade que ela dirige, está Hermínio Bello de Carvalho. Chega Padeirinho e, mais tarde, Nelson Sargento, sambista ecológico (“Ó primavera adorada, inspiradora dos amores, ó primavera idolatrada, sublime estação das flores”), recentemente promovido da condição de pintor de paredes a pintor de quadros. E Neide, histórica porta-bandeira mangueirense.
Pelas tantas, o percurso que vai da Visconde de Niterói à casa do poeta transforma-se numa passarela para o desfile de um destaque feminino, saído não se sabe de onde, mulata clara de elaborada maquiagem barroca, pomposa peruca, e que desafia o sol violento e a poeira num vestido negro, longo, ornado de imensas rosas vermelhas. A força da aparição derruba um banco, Padeirinho desaba, enquanto o destaque vai abraçar o aniversariante.
Seis horas, o samba está absoluto e continua o almoço.
— Isto aqui vai emendar pela noite, só termina amanhã — prevê um especialista em Mangueira.
E antes não poderá terminar a sonora ágape2 comunitária, pois mais gente está sendo esperada; Nelson Cavaquinho prometeu vir, e enquanto houver angu e cerveja, haverá festa em louvor ao poeta, semente de amor germinada há 72 anos ao pé do morro.
JUAREZ BARROSO
Texto transcrito do Jornal do Brasil, 6-8-74. Caderno B, p.4.
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- João Ferreira Gomes, conhecido como Jota Efegê (Rio de Janeiro, 27 de janeiro de 1902 – 25 de maio de 1987), foi um renomado jornalista, cronista, pesquisador e escritor brasileiro. Especialista nos costumes e tradições do Rio de Janeiro, cidade que ele apelidou de “Sebastianópolis”, Jota Efegê dedicou-se especialmente ao estudo do Carnaval. Foi um dos principais cronistas carnavalescos do século XX e uma figura influente no mundo do samba. Sua carreira jornalística começou no Jornal das Moças entre 1919 e 1920, mas foi no extinto Diário da Noite, a partir de 1928, que ele iniciou sua trajetória como cronista de Carnaval. Por mais de 50 anos, Jota Efegê esteve ativamente envolvido com o Carnaval carioca. Em seus textos, criticava a transformação do Carnaval ao longo dos anos, lamentando a perda de sua espontaneidade e autenticidade cultural, que gradualmente cedeu lugar a um evento turístico e comercial. ↩︎
- Designação comum para se referir ao amor de Deus; amor divino; amor incondicional. Festividade ocorrida entre os cristãos, caracterizada pela refeição que era compartilhada com os demais, sendo também celebrado o rito eucarístico. ↩︎
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